Bruno Gonçalves, um homem de 52 anos, baixo, largo, já com pinceladas de branco no seu cabelo. Um homem simples, honesto, pobre, que sempre viveu do seu trabalho diário. Nada demais era do que um simples empregado de limpeza, nessa que tinha sido a jóia do Porto 2001. Trabalhava na Casa da Música desde o dia da sua inauguração. Tinha sido ele e os demais colegas fazerem as últimas limpezas no dia da abertura. Ainda viu algumas das figuras públicas a passarem ao seu alcance e nenhuma reparou nele. Não se importava com essas coisas, sabia muito bem o seu lugar na sociedade.
Bruno tinha um segredo, apenas o segurança do edifício o conhecia. Todos os dias, Bruno levava dentro de uma maleta, um velho violino, onde tocava só e praticamente ás escuras, no palco da sala principal. Tocava para ele e para o seu amor. Amor esse já falecido num estúpido acidente há 30 anos atrás. Estavam casados há 1 ano, ainda a gozar a nova vida de casados, a planear o futuro, quando se viu de repente sem os dois. Sem o seu amor e sem o seu futuro. Planearam tudo, menos a hipótese de algum deles ficar sozinho, num acaso do destino. A partir daí, afogava a sua tristeza no violino oferecido por ela no casamento.
Ele aprendera a tocar muito novo, através de uma vizinha que ensinava música aos miúdos mais abastados da sua região. Bruno era um homem da região de Amarante, nascido numa família que trabalhava para os grandes lavradores da região. Desde cedo, foi visível a sua aptidão para a música e para que não a perdesse, essa senhora deixava-o assistir e aprender nas suas aulas, aceitando como pagamento os seus serviços. E assim, o jovem Bruno lá foi desenvolvendo a sua habilidade e no fim das aulas, ajudava a arrumar tudo e a fazer uns recados para a senhora. Já jovem adulto, mudou-se para os arredores do Porto, procurando ser um músico profissional e encontrando aqui a que viria a ser a sua esposa. Mas as coisas não tinham corrido como deviam e agora o adulto Bruno vivia sozinho, numa casa de um quarto, apanhava o metro para o trabalho e tocava para uma plateia invisível.
E assim vivia Bruno, um dia de cada vez, à espera que Deus resolvesse levá-lo para junto do seu amor. Só que um dia, sem Bruno saber, o maestro residente tinha ficado à sua espera e assim, quando Bruno entrou e se apercebeu da situação em se encontrava, pediu desculpas pela invasão e quando se estava já a virar para sair, ouve o maestro a chamá-lo.
- Espere, eu estava à sua espera. Por favor, fique. E já agora, pode tocar o seu violino – dizia o maestro, já sabendo que aquele homem ia ali todos os dias tocar o seu violino. Já há muito se ouvia algo sobre um empregado que tocava maravilhosamente e ele próprio já tinha ouvido alguns acordes quando passava nos corredores a caminho da saída.
– Nunca se sabe. Como estamos também a precisar de um novo violinista… - interrompeu o maestro, sem acabar a frase, como a querer espicaçar-lhe a curiosidade.
Bruno nada tinha a perder. Assim, dirige-se ao palco, retira da maleta o seu violino e antes de começar a tocar, olha mais uma vez para o maestro que se encontrava na fila da frente. Percebendo o que queria, retira-se para o fundo da sala, bem na última fila, envolto na escuridão, esperando escutar os sons magníficos do violino e não os sons abafados que lhe tinham chegado, naquela vez que passou naqueles corredores.
Inicia assim a sua audiência mascarada por apenas curiosidade. Assim que a fricção das cerdas do arco começam a produzir som nas quatro cordas, o mundo desaparece e o céu desce à terra. O som brilhante, agudo, mas muito aveludado do violino mais parecia música dos anjos. Bruno ia correndo o arco e os dedos pelas cordas, produzindo as notas da mais bela música que alguma vez aquele maestro tinha ouvido. No fim, quando Bruno baixa os braços, ainda com o arco e o violino nas mãos, nota a demora do maestro em aproximar-se do palco. Vagarosamente, vai-se aproximando do local onde supostamente estaria o maestro e vê um homem estupefacto com o que a sua audição lhe proporcionou. Boca aberta, olhos lacrimosos e alma vazia. A música que tinha acabado de ouvir deixou-o completamente atónito com o que um simples empregado de limpeza era capaz de fazer com um violino nas mãos. Este homem, sem dúvida nenhuma, a tocar com uma orquestra, passaria de uma simples pessoa a um músico famoso. A porta da oportunidade tinha-se aberto para Bruno, quando o maestro perguntou – Gostaria de ingressar na nossa orquestra? – Ao que Bruno respondeu negativamente para surpresa do maestro.
- Mas porquê se o senhor toca tão deliciosamente? – pergunta ainda surpreso com a resposta negativa.
- Porque toco por amor e não por fama ou dinheiro. Porque toco para a minha falecida esposa e não para uma plateia. Porque embora esteja num palco, imagino-me no céu a tocar para ela e para os anjos. Porque assim me sito realizado e de mais nada preciso. – responde Bruno, voltando-se para trás em direcção ao palco. Guarda o seu violino na maleta e dirige-se à saída da sala, onde o maestro, ainda com lágrimas nos olhos o interpela por uma última vez.
- Poderei assistir aqui nesta última fila na esperança de você mudar de ideias?
- Pode meu caro, mas mantenho o que disse. Pode assistir, até porque a sala não é minha, apenas a tomo emprestada pelo tempo desta melodia, mas não mantenha a esperança que eu mude de ideias. Boa noite maestro – e retira-se da sala, caminhando para a saída e tomando o caminho de todos os dias para a solidão de seu lar.
Por Alvaro Faustino, em Exercícios de Escrita.